segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Manifesto pelo SNS - Serviço Nacional de Saúde: um direito, um dever

Portugal adoptou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) como modelo de organização dos cuidados de saúde. Cobre toda a população residente, mesmo os emigrantes e estrangeiros, garante a prestação da totalidade de cuidados e nada cobra dos doentes quando estes o procuram, a não ser taxas moderadoras relativamente pequenas das quais a maioria da população está isenta. Cumpre-se o que prescreve a Constituição: o SNS é universal, geral e tendencialmente gratuito. No final dos anos setenta fomos capazes de adoptar uma solução de plena modernidade, com provas dadas no Reino Unido e Países Nórdicos. Depois de nós, italianos, espanhóis e gregos adoptaram o modelo SNS com variantes locais. No ano corrente, no final de uma longa batalha política, os EUA adoptaram um sistema universal baseado nos modelos europeus do SNS.


O nosso SNS detém um admirável registo de ganhos em saúde, em especial na área materno-infantil, com os melhores valores internacionais. O SNS é considerado uma das mais bem sucedidas conquistas da Democracia, demonstra bons níveis de satisfação para utilizadores e profissionais, garantiu o acesso universal aos cuidados de saúde, promoveu desenvolvimento, contribuiu para a economia, criou milhares de postos de trabalho com elevada qualificação e prestigiou o País nas comparações internacionais. Se outro tivesse sido o modelo adoptado em 1976, o País estaria hoje porventura menos saudável, gastando mais e sendo, certamente, mais desigual. As recentes celebrações dos trinta anos do SNS geraram elogios e manifestações de apreço em todos os quadrantes da cena política portuguesa.


O SNS é um bastião da qualidade. É a ele que se recorre nos casos mais difíceis. Existe liberdade de recurso ao sector privado, em áreas de diagnóstico e terapêutica e em outras complementares, todas, em geral de menor complexidade. O sector privado foi sempre livre de se estabelecer no internamento e nas consultas, de forma separada e sem dependência financeira do Estado. É este o entendimento constitucional da complementaridade e não o de uma suposta concorrência que o privado vem reivindicando e que se faria sempre às custas do sector público.


O SNS carece de modernização constante, tanto nas tecnologias, como na organização, como ainda na cobertura dos novos riscos. Mudanças demográficas, epidemiológicas, culturais e sociais determinam problemas de saúde que não nos preocupavam décadas atrás, como a prevalência de doentes idosos e dependentes, a sinistralidade, as tóxico-dependências, as novas infecções virais e bacterianas e as novas doenças degenerativas. A todos estes desafios tem respondido o SNS de modo eficaz, mais rápido e menos dispendioso que nos sistemas da Europa Central, de tipo convencionado. E sendo bem gerido, permitiu reformar os cuidados de saúde primários e criar unidades de saúde familiar (USF), cuidados continuados a idosos e a cidadãos com dependência (UCI), cuidados de saúde oral (através do cheque dentista), prevenção do tabagismo, rápida e eficaz assistência na emergência médica, procriação medicamente assistida, prevenção do aborto clandestino, entre muitas outras acções.


Recentes intenções de revisão constitucional propõem o abandono dos princípios da universalidade, pelo alargamento do papel do sector privado de complementar a alternativo, financiado pelo Estado, o que resultaria em cuidados a duas velocidades. E o abandono da tendencial gratuitidade, com a mudança do sistema para pagamento universal no ponto de contacto do doente com o sistema. Em vez do reconhecimento automático da gratuitidade, teríamos o sistema universal de pagamento no acto, com excepções, segundo o nível de pobreza individual. Voltaríamos ao inquérito assistencial da caridade do antigo regime, estigmatizante e gerador de compadrio e fraude.


Estas propostas são inaceitáveis. Os abaixo assinados, oriundos de diversas tendências e famílias políticas, têm dedicado boa parte da sua vida a servir os Portugueses no SNS, prestando cuidados, organizando-os e aperfeiçoando o modelo. Defendem a continuação do SNS na sua matriz universal e o seu aperfeiçoamento constante. O actual contexto político e social exige posições claras. No nosso entender o Serviço Nacional de Saúde é um Direito de Todos e um Dever do Estado Moderno e Democrático.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

À minha cidade eu mudava o futuro

À minha cidade eu mudava o futuro. Não lhe mexia no passado. Não lhe mudava o sítio. Deixava-a onde está.

Mudava-lhe o espírito. Começava pelo mais difícil. O espírito anda pelas ruas e está nas pessoas. É o espaço público.

Mudava a Alta para a Baixa e a Baixa para a Alta. Misturava-as.
Em Coimbra, a Alta é conhecimento e juventude. Da Baixa diz-se que é a zona envelhecida, em perda. Ocupava-lhe, pois, o espaço com o que é próprio da Alta e usava o mundo que há nela. Não me preocupava em criar segmentos, pólos disto ou daquilo – fazia de tudo coisa da cidade inteira, em qualquer edifício e em qualquer esquina. Punha a cultura pelo meio. E ligava a cidade. Pelos sítios mais bonitos: a Universidade, o Botânico, o Choupal, o CAV e a Escola da Noite, o Parque Verde e o Rio, o plateau magnífico que o Alexandre Alves Costa inventou agora em Santa Clara.

Claro, não fazia das ruas império de carros, como gostam de fazer os planeadores que semeiam túneis, viadutos e canibalizam a cidade. Ou fazem os cidadãos que, com os carros, privatizam a seu favor os passeios da cidade.

Depois mudava-lhe as portas. Abria-as. Escancarava-as. Ao que está próximo e ao que está longe. Convidava os vizinhos. À volta há muitos. 300 mil ou 1 milhão, conforme a escala. Pensava também nos de Lisboa e do Porto. Nos de Salamanca e nos de Madrid. Os tempos são demasiado provincianos, é verdade. Mas eu insistia numa cidade central, pequena mas muito cosmopolita, culta. Insistia numa cidade que fosse grande por ser densa. E mudava tudo para aqui chegar.

José Reis
Prof. da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Investigador do Centro
de Estudos Sociais