Miguel Sousa Tavares, in "Expresso"
Acho que raras vezes assisti a um discurso político tão vazio de ideias, tão pouco mobilizador e tão destituído de alguma forma de grandeza como aquele com que Cavaco Silva anunciou ao país o que o país já sabia desde sempre: que quer mais cinco anos em Belém. Se a ocasião era para explicar as razões dessa vontade, a única coisa que ficou clara foi o desejo pessoal de continuar onde está. Mas isso já eu sabia desde o dia inaugural de Cavaco Silva como Presidente, quando Rui Ochôa fez aquela inesquecível fotografia de toda a família Cavaco Silva subindo a rampa do palácio para tomar posse dele: era o instantâneo de uma ambição longamente perseguida e, enfim, satisfeita.
Não vem mal ao mundo que os políticos gostem de exercer o poder para que foram eleitos: piores são os que dizem que não gostam. Mas também deviam, por pudor democrático, explicar ao que vêm e porque hão-de os eleitores igualmente ficar contentes ou esperançados quando eles são eleitos. Quando Cavaco Silva diz que se candidata em nome do futuro e da esperança, convém parar para pensar no assunto. Nos últimos vinte e cinco anos, desde 1986, ele ocupou por quinze anos o cume do poder, apenas tendo de se submeter a um interregno de dez anos, esperando que Jorge Sampaio terminasse os seus dois mandatos - pois que, desde 1926, não há memória de Presidente algum ter deixado de cobiçar e obter tantos mandatos consecutivos quantos Salazar ou a Constituição de 76 lhes permitiram.
Nesses longos quinze anos de poder que já leva, Cavaco Silva passou dez como primeiro-ministro e dispôs de condições únicas e irrepetíveis: maiorias absolutas, paz social, dinheiros europeus a perder de vista. Não vou agora fazer o diagnóstico desses anos, limitando-me a recordar que, quando ele saiu, disse e escreveu que tinha feito todas as "reformas da década" e do futuro: da justiça, da educação, do fisco, da saúde, do financiamento da segurança social, da habitação, das Forças Armadas, das empresas públicas, da flexibilização do mercado de trabalho e das finanças públicas. Palavra de honra que é verdade: ele garantiu que tinha feito tudo isto. E, como bem sabemos, nada disso estava e está feito - e por isso é que chegámos à beira do precipício.
Nestes cinco anos que leva de mandato presidencial, Cavaco Silva recebeu um país com problemas sérios e entrega ao julgamento dos eleitores um país à beira da falência, e não apenas financeira: também económica, social, educacional, jurisdicional, moral. Ficou quieto e calado quando o primeiro governo de Sócrates (o único a que se pode chamar governo), teve de impor a sua reforma do financiamento da Segurança Social aos sindicatos (a única reforma de Sócrates conseguida); falhou com a solidariedade devida quando Sócrates tentou tímidos passos, logo derrotados, para um princípio de reformas no ensino, na saúde ou na justiça. Quando Cavaco tomou posse, a justiça, por exemplo, era governada pelas respectivas corporações de magistrados: hoje, é governada pelos sindicatos representativos delas e o procurador-geral da República, cuja nomeação pertence ao Presidente, compara-se a si próprio à rainha de Inglaterra e é enxovalhado publicamente pelos subordinados que é suposto dirigir. Alguém escutou alguma palavra sobre isso a Cavaco Silva?
Invoca a sua autoridade de professor de Finanças para dominar bem esses assuntos, mas de que serviu ao país, nestes cinco anos, o seu doutoramento acerca das consequências da dívida pública? Diz que avisou o país e é mais ou menos verdade. Mas fê-lo muito depois de muita outra gente, demasiado tarde e sem coragem para dizer o que era necessário ser dito. Ficou igualmente calado quando viu o Governo enfiar-se no buraco do BPN (onde estavam tantos amigos seus) - e que já custou ao país, até agora, exactamente o mesmo que vamos ter de cortar no défice para o ano que vem; falou elipticamente sobre o desvario dos TGV, pontes, aeroportos e auto-estradas para ninguém, mas não dei por que se preocupasse em nada com a conta acumulada do desastre das parcerias público-privadas, onerando as finanças públicas das gerações que se seguem; deixou que o Governo escondesse a dimensão da derrapagem das contas de 2009 para não perder as eleições e agora, para não perturbar a sua própria campanha eleitoral, ficou calado e quieto até isso se tornar insustentável aos olhos de todos, na esperança de que Passos Coelho acabasse por lhe fazer o favor de aprovar o orçamento - um qualquer, que lhe permita entrar em campanha tranquilamente. Infelizmente, desde o primeiro dia até hoje, a mim, pelo menos, Cavaco Silva deixou-me sempre a sensação de estar a trabalhar diariamente para a reeleição. Exemplo extremo disso foi a lei do casamento homossexual, que ele promulgou para conquistar votos à esquerda, não se importando, para tal, de trair o seu eleitorado, as suas próprias ideias e até o sentido político da eleição do Presidente por sufrágio universal. E eu, que até defendi a lei, fiquei estarrecido com o despudor da pífia justificação que deu para a promulgar - um texto que devia ser estudado nas escolas, como exemplo de tudo aquilo que a política não deve ser.
Disse agora o candidato Cavaco Silva que só após "profunda reflexão" é que decidiu recandidatar-se. Todos sabemos que não é verdade e a prova disso é que ele nem se deu ao trabalho de adiantar uma só razão capaz de levar as pessoas a acreditar que os seus próximos cinco anos serão diferentes dos cinco anos passados. Diz que, depois da "magistratura de influência", vai ter uma "activa" (coisa que não se percebe o que seja ao certo, mas que parece fácil de anunciar agora). Escutando o seu discurso com muita atenção, cheguei à conclusão de que, segundo o próprio, só há duas razões para Cavaco pedir e justificar um segundo mandato: a primeira é porque, ao contrário do que eu sempre imaginei, o cargo é "particularmente exigente"; e a segunda, é porque ele é um homem notável.
O cargo é particularmente exigente, por exemplo, porque já lhe exigiu visitar 200 concelhos; porque o obriga a "uma grande capacidade para acompanhar os assuntos complexos das FA (para os quais jura estar bem preparado pela tropa feita em Moçambique, há cinquenta anos); porque tem de analisar e assinar os diplomas do Governo, "uma tarefa de grande responsabilidade, que exige um conhecimento profundo dos assuntos e uma grande disponibilidade de trabalho" (os tais jipes de diplomas que ele se queixa de ter de levar para férias); porque é preciso, como ele, "conhecer muito bem a situação económica" e ser, como ele, "uma personalidade respeitável e credível".
E quem, se não ele, poderia hoje estar em condições de assumir tão difícil tarefa? Quem, como ele, tem tão grande "visão de futuro", tão "elevado grau de exigência ética", quem é "tão avesso a intrigas políticas e partidárias", quem tem igual "honestidade, rectidão, e respeito à palavra dada", quem não permitiria, como ele, que "a função presidencial seja instrumentalizada por quem quer que seja" (e a inventona das escutas de S. Bento a Belém, congeminada entre o seu assessor de imprensa e o "Público"?)?
O seu grande trunfo eleitoral são, pois os auto-elogios que tão generosamente dedicou a si próprio. Nada mais: não teve uma palavra sobre o país, sobre os tempos que se vivem, sobre o que terá de ser feito e o que não pode continuar a fazer-se. Não expôs uma ideia, um pensamento, um simples desejo político - aos costumes disse absolutamente nada. É nisto, então, que temos de acreditar: que o cargo é terrível, mas, felizmente, o homem ao leme é excepcional. Assim como temos de acreditar que, embora tudo tenha andado para trás e com a sua bênção, as coisas estariam bem piores não fossem a sua (mal aproveitada) "magistratura de influência" e os seus "discretos esforços" - tão discretos que ninguém deu por eles.
O problema com o candidato Cavaco Silva é que ele nem sequer pode, no limite, usar o argumento do candidato Tiririca, no Brasil: "vote em mim, pior do que está não fica". É que estamos bem piores agora do que estávamos há cinco anos. E, por isso, não podendo vangloriar-se do passado, ele anuncia-se candidato "em nome do futuro". Agora, ele vai ser "activo". Mas, agora, como escreveu Cesare Pavese, talvez estejamos já mortos e não o saibamos.